A Rede Globo finalmente escreveu sobre o John Lott (autor de ‘More Guns, Less Crime’, cuja versão da Makron é ‘Mais Armas, Menos Crimes?’), porém, não surpreendentemente, fez de tudo para destruir ele e seu trabalho. A revista Época desta semana traz um breve artigo sobre Lott baseado num outro artigo bem negativo sobre o mesmo que saiu na revista americana Mother Jones há um mês atrás. O artigo repete--as vezes numa tradução verbatim do artigo americano--uma ladainha de acusações às quais Lott respondeu também há um mês atrás no seu weblog. Portanto, ou o Ernesto Bernardes, o repórter da Época, é um incompetente que nem sequer visitou o site do alvo da sua reportagem, ou então estamos diante de mais uma maliciosa manipulação da opinião pública brasileira por parte da Rede Globo. A primeira hipótese, no entanto, pode ser descartada de cara, pois se as omissões e inverdades da Globo, a respeito do desarmamento civil, fossem fruto de incompetência e erro, na média elas favoreceriam o desarmamento cinquenta por cento do tempo; e os jornais, as rádios, as revistas e a televisão provam que este percentual está mais pra cem do que pra cinquenta por cento. Portanto sobra a manipulação. Analisemos as inverdades do artigo, i.e., analisemos ele todo:
1. “Incapaz de exibir provas de que tenha realizado algumas de suas pesquisas, Lott passou a ser considerado ‘uma fraude’, nas palavras de Donald Kennedy, editor-chefe da revista Science.”
Resposta: Primeiro, pairou dúvida sobre a realização de uma pesquisa (v. item 3 abaixo), não de “algumas”. Segundo, Kennedy nunca disse que “Lott passou a ser considerado uma fraude”, nem no artigo da Mother Jones, nem no seu editorial ‘Fraude em Pesquisa e Política Pública’, que o inseriu na polêmica (Science, 18 de abril de 2003, Vol. 300, p. 393, reproduzido aqui). Terceiro, em resposta a esse editorial, Lott forneceu a Science os nomes de nove acadêmicos capazes de corroborar sua história, e o próprio Kennedy então admitiu que “A explicação de Lott sobre a perda de seus dados certamente deve ser aceita [...]” (Science, 6 de Junho de 2003, Vol. 300, p. 1505).
2. “O problema é que, quando seus dados foram analisados por outros pesquisadores, descobriu-se uma série sistemática de pequenos erros nas tabelas, que criavam resultados favoráveis a sua tese.”
Resposta: “Até agora, eu [Lott] dividi meus dados com acadêmicos em quarenta e duas universidades e dois think tanks. Todos que tentaram conseguiram replicar meus resultados, e somente três artigos usando esses dados foram críticos da minha abordagem. Um artigo mais recente pode ser visto como moderadamente crítico. No entanto, a vasta maioria dos pesquisadores concorda que armas curtas ocultadas detêm crimes, e talvez tão importante quanto, nem mesmo os críticos afirmam ter achado que elas custam vidas ou aumentam a criminalidade.” (More Guns, Less Crime, Chicago, IL: University of Chicago Press, 2000, p. 232). Não se espera que um jornalista leia um livro inteiro pra escrever um artigo. No entanto, será que o Ernesto Bernardes só se preocupou em traduzir as alegações do artigo da Mother Jones sem nem saber a versão do próprio Lott? Se ele tentou contactar o Lott, mas não obteve sucesso, porque não o disse no artigo?
3. “Mais grave, Lott é acusado de simplesmente inventar a pesquisa dos 98%. Seus colegas lhe pediram que apresentasse a metodologia do estudo, e ele disse que o trabalho havia sido totalmente perdido devido a um problema no disco rígido de seu computador.”
Resposta: Várias pessoas já confirmaram que Lott conduziu as entrevistas deste estudo e que, de fato, o disco rígido do seu computador quebrou em julho de 1997 (para ler e-mails confirmando a história, veja este arquivo zip). E como o estudo era reproduzível, Lott o refez para o seu novo livro e encontrou resultados semelhantes.
4. “O tiro de misericórdia veio pela internet. Quando a polêmica dos estudos era discutida num chat de especialistas, Lott entrou no ar apresentando-se como uma aluna de pós-graduação e passou a defender as pesquisas. Foi flagrado no ato.”
Resposta: Apesar de ter admitido que foi um erro, Lott já explicou numa carta à Science de 6 de junho que usou um pseudônimo porque postings sob seu nome provocavam irritantes e ameaçadoras ligações para ele. Além disso, uma leitura dos postings confirma que todos os fatos sobre armas ditos por ele sob o pseudônimo são precisos. A mídia tem exagerado as repercussões do uso do pseudônimo, num exemplar ataque ad hominem cujo intuito é destruir indiretamente os resultados da pesquisa do Lott. Sua versão sobre este assunto você encontra aqui (p. 18-21).
5. “O escândalo acontece três anos depois da revelação de outra fraude, a do historiador Michael Bellesiles, que era autor de pesquisas contrárias às de Lott. Quando se descobriu que ele simplesmente inventara alguns números, Bellesiles renunciou a seu posto na Universidade Emory.”
Resposta: Bellesiles não era “autor de pesquisas contrárias às de Lott”. O que ele fez foi um estudo que dizia que a posse de armas nos EUA era coisa rara antes de 1850, enquanto que Lott mostrou que a criminalidade diminuiu com o aumento do porte de armas após 1977. Hoje o livro Arming America, escrito por Bellesiles e baseado no seu estudo, é considerado uma ficção. Aqui segue um curto histórico da saga de Michael Bellesiles:
- Em janeiro de 2000, com alarde de grupos antiarmas e da mídia convencional americana, Knopf publica Arming America;
- Em outubro o Washington Post publica uma das primeiras críticas negativas do livro na mídia convencional;
- Bellesiles diz que os 11.170 registros probatórios de heranças que usou na tese central de seu estudo eram de São Francisco. No entanto, todos os registros probatórios de São Francisco, anteriores a 1850, foram destruídos no terremoto de 1906;
- Diz então que os registros probatórios estariam ou na Biblioteca de Pesquisa da Família da Igreja Mórmon (Salt Lake City) ou na Biblioteca Sutro (São Francisco). Não foram encontrados em ambas;
- Diz então que os registros probatórios de São Francisco estariam no Centro Histórico do Condado de Contra Costa. Não foram lá encontrados, e a então diretora negou que o centro tivesse tais registros e que Bellesiles tivesse visitado o centro;
- Diz que suas notas pessoais sobre os registros probatórios foram perdidas num alagamento do seu escritório;
- Sobre as fontes existentes, muitos consideram que Bellesiles interpretou a maioria de forma errada ou fraudulenta (v. por exemplo aqui e aqui);
- Em janeiro de 2002, no William and Mary Quaterly, três de um grupo de quatro historiadores criticaram severamente a pesquisa de Bellesiles;
- Em maio, Emory University apontou uma banca para investigar Bellesiles;
- Em julho, a banca terminou sua investigação, e Bellesiles depois apelou;
- Em agosto, Emory University anunciou que Bellesiles estaria suspenso durante o segundo semestre do ano;
- Em 25 de outubro, Emory University anunciou que Bellesiles estava pedindo demissão (efetiva em 31/12/02);
- Em dezembro, a Columbia University rescindiu o prestigioso prêmio Bancroft que havia dado a Bellesiles em 2001;
- Em janeiro deste ano, Alfred A. Knopf anunciou que não mais venderia Arming America.
Arming America era muito importante para os antiarmas americanos porque ele poderia inverter a recente onda de interpretações acadêmicas que suportam a idéia de que a segunda emenda da constituição daquele país garante um direito individual às armas de fogo (v. aqui). Os antiarmas de lá--e agora os daqui--estão tentando converter a desgraça de Bellesiles num benefício fazendo um paralelo entre ele e Lott. Diante das informações acima, é obvio que esse paralelo é absurdo e é obvio que Ernesto Bernardes enganou os leitores da Época ao informá-los que Bellesiles “inventara alguns números.” A versão, por exemplo, da repórter Melissa Seckora, da National Review Online, é bem diferente: “Arming America representa um dos piores casos de irresponsabilidade acadêmica na memória.”
6. “Lott, que já foi professor nas respeitadas universidades de Yale e Chicago, vinha escapando de forma mais discreta. Ele foi mudando de emprego nos últimos anos, sempre rumo a faculdades menos importantes - movimento estranho, oposto a sua crescente aparição em jornais e programas de entrevistas.”
Resposta: O “foi mudando de emprego” é uma mudança de Yale para o American Enterprise Institute; as “faculdades” são um think tank; e os “menos importantes” são um dos centros de estudo mais prestigiosos dos EUA, onde pesquisadores são pagos para se dedicarem tempo integral à pesquisa, i.e., sem a necessidade de dar aulas. Portanto, não há nada de “vinha escapando de forma mais discreta” ou “movimento estranho”; o que há é um amontoado de falsidades para o leitor da Época. E se a intenção é enganar, pouco importa que o curriculum vitae de John Lott esteja disponível pra qualquer um que visite seu site.