sábado, 8 de outubro de 2005

Aristocracia da Bala

Não sei o que é mais incrível sobre este texto... se é o fato do autor ser um jornalista brasileiro... ou se o fato de O Globo ter permitido sua publicação nas suas páginas. Confira--sensacional.
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Aristocracia da bala
O Globo, 8-10-05

REINALDO AZEVEDO

Não sei até quando O GLOBO me atura. Pelo tempo que durar, os leitores verão, jamais adoto o estilo didático. Não sou pastor de idéias. Como no poema de Fernando Pessoa, não pego ninguém no braço e detesto que me peguem. Se Virgílio aparecer, vou com ele ao inferno. Como ele não vem, vou para o diabo sozinho. O bem só é bem se o for no fundamento, no objetivo e nos meios. Falhando um deles, é o contrário. Referendo das armas? Voto "Não". O fundamento é não matar? É bem. O objetivo é reduzir a violência? É bem. O meio implica privar o indivíduo do direito de autodefesa? É o mal que se insinua no bem; é o mal essencial.

Só vi revólver fora do coldre como vítima de assalto. Duas vezes. Numa terceira, estava na casa da minha mãe, ouvi um barulho assustador e saí à rua. Um sujeito tinha dado com o carro no poste. Fui socorrê-lo. Minhas filhas, então com 8 e 6 anos, me seguiram, assustadas e curiosas. O veículo era roubado. Ele saiu atirando na nossa direção. Era um passional. Não entregou seu instrumento de trabalho a Márcio Thomaz Bastos. Deve votar "Sim". Nem todo mundo do "Sim" é como ele, eu sei. Não satanizo os que divergem de mim. Quem vota "Não" é tratado como brucutu. Ah, a intolerância dos tolerantes!

Não tenho nem terei armas. Meu delírio de violência é matar passarinhos. Não sou um homem bom. Tentam mandar em mim com sua rotina anunciando auroras: "Vai dormir, vai dormir." Fico destroncando seus pescocinhos em pensamento como quem conta carneiros. Até apagar. São obsessivos. Eu não acredito em auroras. O dia nasce ainda que não cantem. Que imitem Marilena Chauí ? a que cala, não a que fala.

Faz-se uma pergunta às avessas. É duplipensar orwelliano. Por que não ir ao ponto: "O cidadão deve ter o direito de usar uma arma legal para se defender?" Em vez disso, optou-se pelo "Sim" que é "Não" e pelo "Não" que é "Sim". O referendo é inconstitucional. Não se põe em questão o direito de autodefesa. É raiz gêmea do princípio que preserva um indivíduo de se auto-incriminar. Há uma inviolabilidade do sujeito no estado de direito a que nenhum interesse coletivo se sobrepõe. Mais: as estatísticas em circulação não valem. Consta que a maioria das armas apreendidas com bandidos pertencia a cidadãos comuns. É mesmo? A amostragem é científica? Ora...

Outro argumento é que o homem de bem sempre leva a pior no confronto com marginais. Eis a estóica rendição do indivíduo e do Estado ao crime. Bandido virou dado da paisagem, como o Pão de Açúcar ou o Pico do Jaraguá. Até na Coréia do Norte o cara pode se matar se quiser. Enquanto isso, Bastos não entrega os presídios federais, não tira do papel o Plano Nacional de Segurança nem se move para unificar as polícias. Está ocupado demais tentando nos proteger de nós mesmos--e livrar Lula de encrencas--para nos proteger dos criminosos. Eis o homem.

Proíbam-se as viúvas de tomar Chicabom no portão, e surgirá a máfia das viúvas assassinas. A vitória do "Sim" que é "Não" aproximará o cidadão comum do submundo, que vai lhe fornecer a arma. A proibição só será virtuosa se inócua. Ou imaginemos a eficácia total: arma passa a ser monopólio do Estado e do crime organizado. Como o Estado jamais atende o telefone, bastará ao bandido dotado de seu 'meio de produção' tocar a campainha de nossa casa e levar o que for de seu agrado. Terá estuprado o nosso direito, mas não nos terá matado, como diria Kant. Ou não foi ele? Alguém garante que ficarmos expostos aos bandidos é um mal menor do que eventuais acidentes domésticos com armas?

Queria ser bacana como os artistas do "Sim", alguns sempre acompanhados de seguranças--armados, claro--como cansei de ver no Aeroporto Santos Dumont. Também há empresários simpáticos à causa. A vitória do "Sim" criará a aristocracia da bala: alguns terão o direito constitucional à segurança armada, privada, legal, exercida por empresas. O resto que faça a negociação direta com o crime. É o máximo do Estado mínimo! Já adverti: não valho nada, não quero convencer ninguém, não sou bom e torço em pensamento pescoço de passarinhos.

REINALDO AZEVEDO é jornalista. E-mail: mahfud@uol.com.br.

domingo, 2 de outubro de 2005

Resposta a um Visitante desde Website

"Eu vejo que você é CONTRA o desarmamento, e em seu site pude ver vários argumentos consideraveis... estariam eles tão corretos assim?

De que adianta os ''bandidos'' souberem que a popução não possui armas e para isso nos seguirem até em casa para fazer amizade, se ELES ainda terão armas para realizar atos ilicitos?

Uma grande parte das armas dos ''bandidos'' é obtida com furtos das pessoas que legalmente têm armas, se estas pessoas deixarem suas armas de lado, o numero de armas no Brasil diminuiria, e por consequencia os custos das outras fontes de armas brasileiras, como o mercado negro, subiriam o preço de suas armas, desse modo dificultaria a obtenção de armas dos ''bandidos''.

Já vi argumentos dizendo que existem muitas armas nos EUA, mas comparados com o Brasil os indices de homicidio por armas de fogo são muito mais baixos, mas quem quer comparar EUA com BRA? Os EUA são um pais de 1° mundo, com indices de desigualdade social, falta de educação e etc muitos mais baixos que o Brasil. Os EUA devem ser comparados com paises como o Canadá, onde existe a lei do desarmamento e os indices de homicio são muito mais baixos que os dos EUA. Se existisse outro país com indices de desigualdade social, violencia, etc, como os do Brasil, porém COM a lei do desarmamento em vigor, poderiamos compara-los e ver que seus indices de homicidios por armas de fogo seriam muito mais baixos.

Outra coisa é que de cada 4 pessoas que reagem contra um assalto apenas 1 obtem sucesso. Leavando isso em conta com numeros altos, como 4 milhoes de pessoas, 3 milhoes perderiam suas vidas por causa que reagiram com suas armas de fogo. E como já disse antes o desarmamento diminuirá a quantidade de armas possuida pelos ''bandidos'', isso não acabará com a criminalidade, obviamente, mas diminuirá as mortes por armas de fogo. VocÊ prefere ser assaltado por alguem com uma faca ou por um revolver?

Bem esses são alguns dos argumentos que fazem eu ser A FAVOR do desarmamento. Gostaria de ver o seu lado e que respondesse DIRETAMENTE esses argumentos. Espero também mudar a opnião de muitas pessoas que devem estar lendo essa mensagem nesse momento.

Um comprimento cordial"

Antonio (Algusto dos Santos)
Rio de Janeiro
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Seguem minhas respostas.

ANTONIO: "Uma grande parte das armas dos ''bandidos'' é obtida com furtos das pessoas que legalmente têm armas, se estas pessoas deixarem suas armas de lado, o numero de armas no Brasil diminuiria, e por consequencia os custos das outras fontes de armas brasileiras, como o mercado negro, subiriam o preço de suas armas, desse modo dificultaria a obtenção de armas dos ''bandidos''."

EDITOR: Você está dizendo que a curva de oferta diminuirá enquanto que a curva da demanda ficará imóvel à longo prazo. Ambos provavelmente não ocorrerão. Mesmo que você assuma que parte da oferta será destruída--ou seja, assumindo que civis não terão armas ilegais--, nada indica que os contrabandistas não ocuparão o novo espaço vazio, expandindo o contrabando. E se os preços das armas no mercado negro subirem, isso provavelmente expandirá o contrabando. Os preços poderão até voltar ao que eram pré-desarmamento, e ainda assim os contrabandistas estarão felizes pois estarão vendendo mais armas--aquelas que vendiam pré-desarmamento e aquelas que ocuparão o espaço das armas que antes eram furtadas dos civis. Além disso, a demanda por armas poderá aumentar pois o número de bandidos poderá aumentar--afinal de contas, ninguém nega que roubar e estuprar gente indefesa é mais fácil. Um aumento de demanda aumentaria o preço das armas ilegais--mantendo outras variáveis constantes--, mas os bandidos, por outro lado, estariam extraindo mais bens da população que estaria indefesa após o desarmamento (seria loucura considerar a hipótese de que o governo aumentaria nossa segurança). E os contrabandistas estariam faturando ainda mais já que um aumento da demanda aumentaria o preço e também o número de armas vendidas.

Agora, reconheço que eu e você estamos falando de hipóteses... O que é que a realidade nos mostra? Bom, basta ler o que ocorreu no Reino Unido e na Austrália após a passagem de severas leis anti-armas: Ambos são ilhas, onde o controle de fronteiras é bem mais fácil que no Brasil, e ambos tiveram um aumento vertiginoso das taxas de crimes com e sem armas. O Reino Unido implementou um severo desarmamento em 1997 (no Brasil, o plebiscito decidirá somente sobre a proibição da venda, e se passar, vai criar a classe dos "com-armas" e dos "sem-armas", ou seja, continuará existindo armas nas mãos de civis. Se houver um confisco mais tarde das armas legais existentes, o governo brasileiro terá de pagar valor de mercado por elas, o que custaria centenas de milhares de reais aos cofres públicos). No entanto, entre 1998/99 e 2002/03 a taxa de crimes com armas na Inglaterra e no País de Gales dobrou. Desde 1996, a taxa de crimes violentos subiu 69%; a taxa de assaltos subiu 45% e a taxa de assassinatos subiu 54%. A '2000 International Crime Victimization Survey' mostrou que a taxa de crimes violentos na Inglaterra e no País de Gales era o dobro da norte-americana. A diferença deve ter aumentado já que desde então crimes reportados pela polícia inglesa subiram 35%, enquanto que nos EUA houve uma pequena queda.

ANTONIO: "Já vi argumentos dizendo que existem muitas armas nos EUA, mas comparados com o Brasil os indices de homicidio por armas de fogo são muito mais baixos, mas quem quer comparar EUA com BRA? Os EUA são um pais de 1° mundo, com indices de desigualdade social, falta de educação e etc muitos mais baixos que o Brasil. Os EUA devem ser comparados com paises como o Canadá, onde existe a lei do desarmamento e os indices de homicio são muito mais baixos que os dos EUA. Se existisse outro país com indices de desigualdade social, violencia, etc, como os do Brasil, porém COM a lei do desarmamento em vigor, poderiamos compara-los e ver que seus indices de homicidios por armas de fogo seriam muito mais baixos."

EDITOR: Primeiramente, não existe lei do desarmamento no Canadá. A venda de armas lá para civis é legal. De fato as vendas de armas lá são mais restritas do que nos EUA. Porém desde que o programa de registro de armas começou em 1998, a taxa de homicídios canadense aumentou, enquanto a dos EUA caiu. Os canadenses já gastaram mais de $1 bilhão de dólares no seu registro de armas--500 vezes as estimativas iniciais. Para quê? Ainda assim, as taxas de crimes com armas nos EUA são de fato maiores que as do Canadá. Mas isso se dá ao maior controle de armas no Canadá? O grosso dos crimes violentos norte-americanos acontece em guetos, em geral envolvendo pessoas com ficha criminal--uma faceta social do EUA que não ocorre no seu vizinho do norte. Uma comparação mais homogenia das taxas de homicídios entre os dois países se dá comparando estados americanos ao sul da fronteira EUA-Canadá--Idaho, Montana, Dakota do Norte e Minnesota--com as províncias canadenses ao norte da fronteira--Alberta, Manitoba e Saskatchwan. Neste caso o que se vê é que o controle de armas canadense não teve efeito, apesar de achacar cidadãos de bem, tirar suas liberdades e tomar mais recursos fiscais. Pense nisso lembrando que a posse de metralhadores em Montana é permitida (com licença) e que o porte de armas nas ruas é permitido nos quatro estados americanos mencionados.

ANTONIO: "Outra coisa é que de cada 4 pessoas que reagem contra um assalto apenas 1 obtem sucesso. Leavando isso em conta com numeros altos, como 4 milhoes de pessoas, 3 milhoes perderiam suas vidas por causa que reagiram com suas armas de fogo. E como já disse antes o desarmamento diminuirá a quantidade de armas possuida pelos ''bandidos'', isso não acabará com a criminalidade, obviamente, mas diminuirá as mortes por armas de fogo. VocÊ prefere ser assaltado por alguem com uma faca ou por um revolver?"

EDITOR: A última vez que li sobre números semelhantes a estes, a fonte dos dados havia sido um delegado. Não tenho nada contra delegados, porém conduzir um estudo desses requer instrumentos estatísticos complexos. O maior e mais óbvio problema com esse tipo de estudo é que ele sofre de um gigantesco "viés de amostra". Este tipo de viés pode levá-lo a concluir que um excelente hospital é pior que o centro de saúde da esquina porque o hospital tem uma taxa de mortalidade maior. Os registros policiais praticamente só tomam nota dos casos de defesa mal sucedidos. O sujeito que atira num vagabundo na rua ou que mostra uma arma para um vagabundo e o põe para correr, não vai à delegacia contar sua história. Prof. John Lott Jr., durante estadia na Universidade de Chicago, conduziu uma pesquisa e estimou que nos EUA em 98% dos casos de usos defensivos de armas de fogo, a mera amostra da arma afugentou o agressor. Esta taxa de sucesso já foi revista um pouco para baixo por outros estudos, mas ainda continua na casa dos 85%-95%--bem longe dos 25% que você menciona.

Cordialmente,
Editor